
Foto de Marcelo Lagarano Rossi
Olhares estrangeiros de São Paulo
Por Marcelo Laganaro Rossi
Quinta-feira, 08 de setembro. Praça da República. Região central da cidade de São Paulo. É um dia quente de inverno. A brisa do vento refresca a sensação do calor. O período da tarde marca o horário de almoço. De um lado da calçada, trajando vestimentas sociais, empresários caminham de forma apressada para atender um cliente no telefone em uma das mãos, enquanto tentam equilibrar uma pasta preta e um paletó na outra. Do outro lado da calçada, transeuntes mais humildes disputam boca a boca um lugar nas barracas de fast-food. Personagens anônimas buscam ser reconhecidas pelos talentos que têm.
Ao atravessar boa parte das barracas, uma trilha sonora gostosa se aproxima constantemente. Próximo à estação do metrô República, recolhido debaixo da sombra de uma árvore, um senhor toca a sua flauta manufaturada de madeira. De camiseta rosa e uma pochete, com as costas levemente flexionadas para frente e a haste dos óculos tocando a ponta de seu nariz, o músico boliviano Cecílio Portugal Choque, de 57 anos, está em São Paulo há 35 anos. Um intercâmbio cultural foi um dos motivos que o fizeram escolher se mudar para a cidade, onde conheceu a esposa e teve filhos. “Nunca faltou nada para mim, porque eu batalho. De segunda a segunda. Não paro nenhum dia”, gesticula com as mãos, pausadamente, sem esperança de melhorar suas condições de vida.
Quando perguntado sobre se pretende um dia voltar à Bolívia, Cecílio interrompe a respiração e hesita. Sem a certeza do que dizer, balança a cabeça positivamente. O orgulho com o qual narra a história de sua família é a expressão manifestada em seu sorriso. Um de seus maiores sonhos é de que haja igualdade econômica e social entre as pessoas. Cecílio não é apenas um músico. É um observador do ritmo e da harmonia do cidadão paulistano.
Domingo, 11 de setembro. Praça Kantuta. Canindé. Feira boliviana na região central da cidade de São Paulo. É dia de confraternização. O céu está nublado. São Pedro ameaça chover. A entrada que acessa o evento está coberta por uma fumaça cinza. O cheiro de churrasco é agradável. O espaço é delimitado por uma faixa amarela e preta e por cones de sinalização de trânsito. O pré-conceito e a xenofobia cerceiam os imigrantes dentro daqueles limites traçados pela sociedade.
O encontro entre diferentes povos latino-americanos é a marca da diversidade e da identidade cultural. Bolivianos. Paraguaios. Peruanos. Três nações vizinhas se reúnem para celebrar as suas tradições. Em homenagem à cidade boliviana de Cochabamba, cuja data oficial de comemoração é dia 14 de setembro, a Festa esportiva & cultural convida os residentes cochalas e os pedestres que perambulavam pelas ruas do bairro a visitarem a região. A apoteose está sacralizada na imagem da virgem de Urkupiña.
No final de um extenso corredor de barracas, sentado em um canteiro de concreto, ao lado da quadra esportiva e na frente de uma piscina de bolinhas, está o estudante boliviano Moisés Mamaní Martinez, de 20 anos. Vestindo uma camiseta vermelha e um agasalho cinza de algodão, com o cabelo espetado e a aparência séria, Moisés conta que reside em São Paulo há um ano e meio e que está em busca de trabalho. “Eu vou ficar aqui [em São Paulo] por um tempo para ser alguém na vida”, confessa, preocupado e tímido, o estudante.
Sobre a questão da língua no relacionamento com as outras pessoas, o boliviano é claro quando afirma a necessidade em aprendê-la para se comunicar. Mais relaxado e à vontade com a conversa, ele declara que tem o sonho de ter uma casa própria e um carro particular para poder trabalhar. Moisés é um profeta boliviano e a esperança de vida das próximas gerações.
Retornando à rua da entrada principal da Praça Kantuta, escondida atrás de roupas e toalhas típicas, bolsas e mochilas e utensílios regionais, dona da barraca de toldo azul, se aproxima uma senhora. Incomodada e envergonhada com a surpresa, a boliviana Elvira Quispe Minci, de 46 anos, trabalha como cozinheira em um restaurante da região e, aos domingos, é vendedora de artigos têxteis do evento. Elvira está em São Paulo há cinco anos, com o objetivo de conhecer a cidade e de encontrar um trabalho. Usando um avental azul e sandálias, a cozinheira é reservada e prefere preservar a sua imagem.
Questionada sobre os planos de voltar à Bolívia, a cozinheira diz ter vontade de retornar à sua pátria. Entretanto, ela preferiu ficar no Brasil por considerar melhores as condições de vida. Ainda insegura e taciturna com a presença alheia, a boliviana relata perseguir o sonho de ter uma casa própria e bastante dinheiro, para não precisar mais trabalhar. Além de ser uma cozinheira de mão cheia, Elvira é vendedora de alegria e felicidade.
Próximo à saída, do outro lado da quadra esportiva, ouve-se uma nova melodia, diferente àquela escutada na Praça da República. Perto às barracas de artigos bolivianos, cercado por árvores, o grupo folclórico peruano Sikuris Qhantati Ururi Brasil ensaiava um novo arranjo para uma apresentação. Entre sons de tambores e de flautas, um deles chamou atenção especial. Mergulhado no meio da multidão que o cercava e trajando indumentária social e um colete vermelho, o modelista peruano Armando Gourgwana Ganzaña, de 63 anos, está no Brasil há 13 anos. De baixa estatura e portando óculos, o modelista conta que se mudou para São Paulo devido a uma perseguição política em seu país. Escolheu o Brasil por ter família morando aqui.
Em relação à dificuldade em aprender a língua portuguesa, o peruano diz que é um problema e relata um caso curioso em que protagonizou. “Eu fui demitido justamente por não falar direito o português”, lamenta muito triste, o modelista. Quando perguntado se planeja voltar um dia para o Peru, Armando comenta que, se não conseguir alcançar o que deseja aqui no Brasil, país que abriu as portas e o acolheu com carinho, vai direto ao ponto e declara que pensa em retornar às suas origens. Com a cabeça baixa e o ouvido próximo, diz ter o sonho de realizar as suas conquistas pessoais. Armando é músico em um grupo folclórico peruano e confecciona as medidas para uma sociedade mais justa e menos desigual.
Quarta-feira, 14 de setembro. Igreja Nossa Senhora da Paz. Glicério. Região central da cidade de São Paulo. É dia ensolarado e abafado na capital paulista. O Sol arde demasiadamente a pele dos trabalhadores. O espaço é harmonioso e aconchegante. Os frequentadores da região estão em uma conversa descontraída com os seus semelhantes. As crianças ignoram os problemas de infraestrutura e os conflitos sociais e brincam de jogar bola. Pessoas estão sentadas na escadaria da Igreja. As personagens caminham a passos lentos, sem saber o destino que as aguardam o amanhã. Vendedores ambulantes comercializam milho na espiga ou cozido. Outros tentam a sorte vendendo roupas.
Nos fundos da catedral, há uma porta que dá acesso à secretaria geral e aos escritórios da Missão de Paz. O projeto existe há quase cem anos na cidade de São Paulo. Desde que foi fundada, em 1940, a comunidade acolheu diferentes etnias. A Missão de Paz surgiu com o objetivo de resgatar as identidades dos italianos no exterior. A Congregação dos Missionários de São Carlos (Missionari Scalabriniani) foi inaugurada em 28 de novembro de 1887, por Dom João Batista Scalabrini (1839-1905), um bispo da Igreja Católica da cidade de Piacenza, na Itália. É uma comunidade internacional de religiosos que acompanham os povos migrantes das mais diversas culturas, crenças e etnias.
Além dos imigrantes italianos, a Missão de Paz acolheu vietnamitas, coreanos, japoneses, bolivianos, peruanos, chilenos, argentinos, nigerianos e senegaleses. Desde 2013, os haitianos vieram compor a comunidade. A Missão de Paz fornece assistência social para o atendimento à população migrante.
Na antessala dos cômodos onde se localizam os escritórios, sentado em um banco de madeira, sozinho e mexendo no celular, o pedreiro e porteiro haitiano Olsen Constant, de 26 anos, está no Brasil há três anos. De camiseta azul marinho, boné preto e mochila nas costas, o pedreiro conta que veio para São Paulo para tentar ajudar a sua família. Desempregado, Olsen tinha a esperança de melhorar as condições de vida.
Ao ser questionado se pretende regressar para o Haiti, Olsen conta sentir vontade de voltar para rever a família, mas que, atualmente, a situação está difícil. O porteiro relata ter o sonho de ser engenheiro, mas como é preciso pagar para poder estudar, não tem esperanças de conseguir se formar. Olsen abre as portas para a saudade de seus entes e almeja construir a sua própria história de vida.
Animada e entusiasmada com a conversa de um conhecido seu, a comerciante haitiana Mielan Edwoit, de 34 anos, queria saber o que estava acontecendo. Vestida com uma blusa laranja e uma calça azul escuro, Mielan relata que está em São Paulo há cerca de um ano e três meses. De pé e gesticulando com os braços, a comerciante conta que se mudou para o Brasil à procura de emprego para poder ajudar seu filho. Também desempregada, ela não tinha recursos para viver onde morava.
Quando perguntada se pensa em voltar para a sua pátria, Mielan diz que quer permanecer no Brasil para poder encontrar um emprego e ajudar sua família. A comerciante aborda que tem o sonho de um dia ser cozinheira. Mielan não é só uma vendedora de sonhos. É também uma realizadora do amor que tem por sua prole.
São Paulo é uma cidade multicultural. A diversidade é sua característica. É a identidade de gerações que por aqui já passaram, vivem e permanecerão unidos. A região central da cidade é o ponto em comum dessas comunidades. As novas perspectivas da população imigrante na cidade de São Paulo. Praça da República, Praça Kantuta e Igreja Nossa Senhora da Paz. República. Canindé. Glicério. Cecílio, Moisés, Elvira, Armando, Olsen e Mielan. Nascidos na Bolívia, no Peru e no Haiti. Personagens anônimas em busca de reconhecimento social. Olhares estrangeiros de São Paulo.