
Crédito: internet - Os operários, 1933, Tarsila do Amaral
O novo quadro de Tarsila
Dos operários a uma identidade original
Por Layane Serrano
Era 1933, cidade de São Paulo. Tarsila escolhia cores para o seu quadro “Operários”, uma pintura que registrou a realidade do trabalho paulista na época em que a cidade era “cinza”, pela fumaça que era soprada das fábricas.
Os operários mal couberam em seu quadro e de tão juntos simbolizaram uma massa sem personalidade, apesar de suas raízes alcançarem cidades no campo ou ultrapassarem oceanos e fronteiras. Tarsila pintava o que via e o que sentia. Eram homens e mulheres diferentes, mas com o mesmo ideal: produzir como máquinas para sobreviver como seres humanos.
Hoje, se fosse possível criar um novo quadro de Tarsila, certamente novos personagens iriam restaurar não apenas a imagem, mas o conceito de sua obra. As fábricas perderam lugar para os comércios e para os escritórios arranha-céus, e as pessoas dividem as calçadas por onde circulam com artistas e comerciantes. Atualmente, vemos a cidade com outras neblinas que não vem de fábricas, mas de veículos que se juntam a cada sinal vermelho ou manifestação social. Agora o estilo e o desafio do trabalho em São Paulo está em não sentir que está trabalhando.
Para Chaves trabalho é uma “troca de energia”. Com um cigarro aceso na mão direita, se sente mais à vontade para contar sobre seu trabalho de artesão, em uma noite quente de sexta-feira. Já viajou 18 estados e dois países, sempre com barba, calça e camisa folgada e uma boina que lembrava Che Chevara. Saiu de casa aos 18 anos por não querer ser operário como seu pai. Hoje, ao lado da estação Trianon Masp, Chaves expõe, sobre uma mesa improvisada e coberta com um tecido de camurça preto, pedras que ele traz de suas viagens para criar colares e pulseiras, as quais ele produz não como uma máquina, mas como um artista:
- Porque você considera o seu trabalho importante?
- Não vendo só arte, uso também a minha energia, afinal vivemos em comunidade e cada profissão tem a sua importância, entendeu? Você só tem que decidir que história você quer viver e qual energia você quer passar – comenta o artesão com os olhos que começam a segurar lágrimas, talvez por emoção ou simplesmente pela fumaça do cigarro.
Logo volta a receber os clientes, e termina seu atendimento com “Muito obrigado! Bate forte” – termo que ele usa para cumprimento com as mãos. Chaves trabalha sem paredes e patrão para lhe cobrar.
Ana Luiza é estudante universitária e possui uma flexibilidade diferente. Trabalha em “comoworking”, como se chama os espaços livres de trabalho onde cada colaborador leva seu notebook e escolhe uma mesa no andar em que a empresa alugou. De segunda a sexta, ela sai de Santo André e desembarca na estação de metrô Brigadeiro com seu notebook ao lado. Ela trabalha com assessoria desde os 18 anos. É uma típica mestiça japonesa, cabelos pretos e lisos, que passam da cintura. Seu olhar sorri todas as vezes que seus lábios decidem fazer a mesma coisa. É elétrica e costuma falar rápido, deve ter acostumado seu jeito com a rotina do trabalho. Quando chega no 11º andar, encontra um lugar amplo, com paredes coloridas e uma varanda enorme que avista de um canto ao outro a Paulista. Não tem uma hora fixa para entrar ou sair. No andar, além das mesas disponíveis para ligar o notebook, há salas de jogos, internet à vontade e até sofás para dormir na varanda.
- Não tenho chefe o tempo todo do meu lado, me cobrando e vigiando o que eu faço. Temos que nos encontrar uma ou duas vezes por semana, mas com essa liberdade me sinto dona do meu próprio trabalho.
- Você costuma jogar aqui?
- Já tentei o tiro ao alvo, mas confesso que não tenho muito jeito. Gosto mais de descansar no sofá no tempo livre - ri a garota ajustando o sutiã com um ar descontraído e desvergonhado.
Com essas novas representações de trabalho em São Paulo, é certo que Tarsila pintaria personagens com características muito diferentes do quadro de 1933. Provavelmente, pintaria executivos conservadores com ternos e gravatas ou aqueles mais modernos com camisa polo e calça jeans, artistas de ruas com estilo hippie, estudantes com fones de ouvido e idosos comerciantes; desenharia mais mulheres e mudaria a expressão dos rostos exaustivos, para uma aparência que assemelhasse o esforço do trabalho à idealização pessoal.
Neste novo quadro não faz sentido as pessoas estarem tão juntas. Elas precisam de espaço, pois são livres para dançar conforme a música que desejam tocar em suas vidas. E por falar em ritmo, Roger Lopes e Henrique Longo, dividem o mesmo espaço na avenida, o mesmo violão e o mesmo sonho: de ser cantor, de “viver” da música. Eles cantam, em frente ao shopping Paulista para um público que não para. O som do violão entoa na recepção do prédio comercial e retorna para a avenida. Alguns são levados pela música e até deixam um trocado, mas logo buscam seu destino em um sábado estrelado.
Roger veio de Porto Alegre, sul do Brasil, há dois anos. Com um timbre grave, semelhante ao do cantor Nando Reis, canta uma música autoral com um estilo próprio que combina com seu cabelo cacheado que ele costuma balançar enquanto toca. Com um sorriso no rosto, transmite através de suas cordas vocais aquela energia boa que Chaves comentou. Para ele, disciplina e “saber ouvir os nãos” são os principais desafios de sua carreira. Durante o dia, ele dá aula de treinamento vocal em sua casa, de segunda à sexta, e à noite costuma cantar em barzinhos na Vila Madalena.
Já Henrique Longo, veio de Salvador, Bahia, para morar com seu pai que é dono de um comércio em Santo André. O instrumento parece não pesar para um garoto com um corpo franzino que com um cavanhaque tenta aparentar uma idade mais velha. Quando chegou em São Paulo, há sete meses, começou a trabalhar em um restaurante, porque segundo ele “o sistema capitalista força você consumir”, mas apesar das dificuldades do ramo musical, ainda acredita em seu sonho e por isso continua com seu violão elétrico tocando música brasileira nas avenidas por onde passa.
Para finalizar o novo quadro, seria possível mudar o fundo da pintura de Tarsila; ao invés de fábricas cinzentas, o novo artista poderia pintar talvez um céu azul, resgatando aquele ditado “de que o céu é o limite” em São Paulo para quem é ousado em ser livre do padrão estabelecido pela sociedade e capaz de determinar suas escolhas para se realizar dentro e fora dessa nova pintura.

